Em uma das minhas viagens ao meu glorioso Rio de Janeiro, saindo de Porto Velho, com conexão em Manaus, indeléveis lembranças voltaram a minha mente.
Depois de passar pela cidade, saboreando um suco de açaí, com açúcar mascavo, leite de mula preta e gengibre, resolvi dar uma esticada ao Porto de Manaus, conhecido pelo escoamento de produtos das várias regiões do Brasil e do exterior, para ver de perto o trabalho dos seus homens, que lutam diuturnamente, carregando e descarregando cargas dos navios, traineiras e barcos, vindos do interior do Estado e, até do estrangeiro, trazendo produtos para serem vendidos na cidade e outras regiões do Brasil, num frenesi dos mais movimentados.
Na oportunidade, conheci entre outros, o Zé Pistola, figura por demais conhecida no cais que foi falando da sua vida com a sua “pretinha”, mulher de seus cinco filhos que mora numa ilhazinha perto e que com ele trabalha, vendendo quinquilharias e comida feita na hora, para os passageiros dos barcos e trabalhadores do cais. Disse ele: Olha aqui seu moço, o senhor não me é estranho. Parece que já te vi em outras ocasiões por aqui. Confesso que gostei do senhor, pois, as pessoas que vêm até aqui principalmente turistas, tratam a gente como se nada fosse. Passa pela gente, como se passasse por qualquer bicho. Não fala, não cumprimenta e não bate papo, só dar ordens.
O senhor é diferente, fica perguntando pra gente como é a vida aqui, e faz a gente se sentir mais gente. “Por isso vamos sentar aqui perto da banca da minha “pretinha” e, enquanto eu dou um descanso pro meu velho corpo vou também falar algumas coisas sobre a nossa vida e aproveitar para tomar o meu suco de Açaí com leite de Mula preta que é pro mode” a gente ficar com mais disposição e cheio de energia para o trabalho e outras coisas mais”.
“Esse que o senhor tá vendo ali é meu filho menor, perto dos homens de dinheiro que chegam e que saem daqui para passear, pescar ou ir para alguma ilha, (que temos muitas por essa imensidão do Solimões e do Negro)”. “Os outros três que é maior de idade, ficam nas barrancas ou em barcos pescando pra mode a gente comer e, às vezes, até vender uns peixinhos fritos que a minha “pretinha” sabe preparar na hora, como ninguém”.
Olha moço, a vida aqui não é muito boa não, mas a gente não quer sair daqui, pois, já estamos acostumados à vida dura da sobrevivência e aqui temos o que cumê. Apesar de aparecer boatos que vamos perder a nossa Amazônia, ou dividir com estrangeiros, a gente não acredita não. Tem estrangeiro que até é bão, nos trata com educação e respeita a nossa cultura, mas tem uns que chegam com dinheiro querendo comprar de tudo, até a nossa cabeça. Mas a gente que já sabe como é não entra nessa não. “Quando a esmola é grande, a gente desconfia”.
Ma Zé, se a vida aqui não é boa – perguntei – como é que você não quer sair daqui? Acontece, meu amigo que mesmo não sendo boa ainda conseguimos sobreviver, pois, não temos cultura e nem dinheiro suficiente pra viver em outro lugar. Todos daqui se sentem igual e não pisam em ninguém. De vez em quando aparece algum valentão, mas não fica por muito tempo não. Se fizer besteira sai correndo, ou vira comida de piranha, que, a aqui, “nós num é besta não”. Se vier com Deus será bem vindo, mas sem, com o diabo no corpo, a gente dá logo um jeito de sumir com o cabra.
Para o senhor ter uma idéia, aqui tem uma cabrita (mulher) que todas as tarde e noite, balança os seus requebros aqui no cais, a procura de alguém para fazer amor e ganhar um dinheirinho. Ela é querida por todos que aqui véve e todos gosta muito dela e respeita o seu trabalho. Mas quando chega alguém metido a valentão, a coisa pega. Ela mesma se vira com o cara e se não é do lugar, a coisa fica preta, pois, além de ela ser boa de briga, com faca ou pau, também a turma vai ao seu socorro. Se tudo corre bem, ela agradece ao cabra e tudo volta ao normal.
Num dia desse passado, ela estava toda fogosa na beira do cais com sua saiazinha pequena dançando, quando chegou um cara tentando agarrar as ancas dela. Sem conversa, sem nada, ela não aceitou e tacou uma paulada na cabeça do bobão que foi levado para o Pronto Socorro. A polícia chegou e ninguém soube dizer nada e nem quem fez aquilo. Ele, – o bobão – também preferiu não dizer nada pra não complicar ainda mais a sua vida aqui por essas bandas. A lei aqui é seca, bateu levou, beijou é beijado. Assim nós vamus levando a vida, respeitando as pessoas e sendo respeitados. Aqui no Solimões, tem um montão de ilhas pequenas que os turistas gostam de conhecer.
Então a gente leva de barco ou canoa para ele visitar os lugar. Passam o dia todo pescando e, à noite voltam. Tem gente que até arma barraca pra passar a noite e fica acordado para ver a natureza dormir e acordar. É muito bonito a gente olhar para o céu e ver as estrelas e os cantos dos pássaros, numa música tão linda e suave que a gente esquece da vida. Por isso é que eu e minha “pretinha” não queremos ir embora, pois, a vida que Deus nos deu é essa e agradecemos todas as manhãs e noites por estar vivos fazendo parte dessa natureza.
Despedi-me do Zé Pistola e fui caminhando pelo cais para ver de perto aquele burburinho de gente carregando e descarregando aquelas traineiras e barcos que chegavam pelo Solimões. Os barcos entupidos de gente, pequenos bichos, galinhas, porcos, cabras, e aves numa mistura infernal. Até uma cobra enrolada no pescoço de um menino, mostrando a grande amizade entre os dois. Mistura entre bichos e gente numa visão impressionante, fazia crer que, além da vida dura daquela gente, também o contato direto com a natureza e com os bichos, diz bem da felicidade que sentem em fazerem parte daquela região ainda inóspita, mas que mostra um brasileiro guerreiro e, sobretudo, valente que não mede sacrifícios para sobreviver, lutando contra todas as intempéries da natureza além das constantes ameaças vindas de inescrupulosos de fora da região. Somente quem convive ali pode avaliar e se orgulhar de ter irmãos fortes, corajosos e dispostos a lutarem pelo seu pedaço de chão que a mãe-natureza legou.
Como eu não tinha muito tempo, saí do cais do porto em direção do Centro de Manaus, andando sem destino pelas ruas centrais, onde pude observar que seus casarões e templos majestosos do tempo dos velhos Barões da borracha permanecem imponentes constratando com a modernidade. É claro, com a ajuda dos governos que procuram sedimentar e erradicar as riquezas e as histórias gravadas indelevelmente no majestoso Museu Nacional e outros modernos e suntuosos prédios.
Foi realmente dias de muita felicidade, voltar a Manaus e participar com aquela gente, embora por pouco tempo, entre pessoas rudes e menos bafejadas pela sorte, mas que, decididamente, permanecem fieis aos seus lugares e são felizes dentro da sua ótica.
Em tempo, Essa história da Amazônia, pode ter semelhança com gente e fatos, porém terá sido mera coincidência.
Texto: Ivanir Aguiar (Jornalista e membro da Academia Vilhenense de Letras)
Foto: Arquivo Pessoal