O mais difícil é botar ele no casco. Tem que trazer para a raseira e embarcar no fundo. Aí na hora de trazer para cima as quinze arrobas não pensam nada. Depois arrobas não pensam nada. Depois é só esgotar a água com cuia e os cascos flutua com aquele bichão dentro.
O caboclo então vem remando com cuidado amode o banzeiro, mas chega no flutuante. Ai faz uma danada e reparte e ganha com os vizinhos. Muita gente boa esse povo do mira. Igual que o padre Assis. Ta dormindo? Dorme não. A vó fala muito né? Eu quero te dar o sabe. O pouco que eu sei. A professora lá da cidade ensina só para os meninos que sabem enxergar direito e não com dois peneira de farinha que seu pai vai ter recurso para mandar ninguém para a cidade. Mas você sabe que a vó agora misturou tudo dentro do juízo? Pois é: primeiro chega os americanos e ensina a amar a Deus que, graça a Deus nó tudo ama. Mas diz que padre de batina não presta, que a gente tem que seguir a cabeça de americano e eu fico sem saber se esse Deus tem diferença. Eles até livro de Deus pra gente. Vem então o padre Assis e fala que americanada não é de Deus coisa nenhuma e que se nós seguir a cabeça deles nos ficamos até sem o flutuante que é a única coisa que a gente tem. Não é confusão demais? Nós aprendemos com os nossos antepassados que Deus é um pingo d’água do mira e é o mira inteiro. Então se é Deus uma coisa tão singela porque essa gente tão sabida que anda de roupa bonita fica nessa briga toda? Não sei não. Eu acho mais certo como minha vó ensinou nos passados, quando o mira era e não tinha nem padre americano aqui: que deus está na água que a gente bebe, que Deus é o sol que alumia o mira e é a lua redonda que mostra o lombo do pirarucu, é o pior da coruja agourenta e é o barro dos alagados. Deus está na raiz do jenipapo que cura a sua febre e no azedo da carambola que trinca seus dentes. Então Deus é a água, é a terra é o fogo. São os passarinhos que vêm pousar na proa dos barcos.
Ivanir Aguiar é jornalista e membro da Academia Vilhenense de Letras
