Na frente do barraco improvisado com lençóis e lona, a visão de Claudineia é o trânsito da Avenida Miguel Sutil, uma das mais movimentadas de Cuiabá. Nas profundezas do concreto do viaduto, ela se desdobra para sobreviver à fome, às doenças e a os riscos que as ruas trazem.
“Não existo para a sociedade, não existo para o país. Essa vida é triste, nem sei se tenho nome. Sinto falta de ter com quem conversar, as pessoas passam e sentem medo de mim. Tenho que falar que não vou fazer mal, só vivo na rua mesmo. Às vezes sinto que morri”, desabafa.
No viaduto onde Claudineia ou Ana, como ela gosta de ser chamada, vive com outras pessoas na mesma condição. Usuária de crack desde o início da adolescência, ela diz não lembrar o próprio sobrenome e calcula que tenha 45 anos. Suas memórias parecem vir à mente em lampejos.
Ela lamenta que se, visse a mãe hoje, sequer a reconheceria. Para amortecer a dureza de viver nas ruas, precisa da pedra já quando acorda. Na maioria das vezes sequer dorme, passa as noites em claro. A busca pelos segundos de prazer oferecidos pela droga não deixa tempo para descansar ou se alimentar.
EXPERIÊNCIAS NA RUA
Há cerca de dois meses, Claudineia conta que foi atropelada na avenida. Pensou que fosse morrer e pediu a Deus para que tivesse forças, já que não conseguia se alimentar ou beber água.
Essa é apenas uma das três vezes que a mulher negra e de cabelos perfeitamente cacheados diz ter ficado no “vale da sombra da morte”, desde que se pegou vivendo em situação de rua.
“Uma vez fui estuprada por seis homens, quase me mataram, ‘quebraram’ minha cabeça e me deixaram na beira de um rio. Acharam que eu estava morta. Outra vez um desconhecido me deu mais de 10 facadas”, diz enquanto mostra as cicatrizes das perfurações espalhadas pelo corpo.
Como forma de driblar a realidade, as pedras de crack são de extrema necessidade para Claudineia. Da hora que acorda, para “o corpo reagir”, como explica, até a hora de dormir. Naquele dia, ela ainda não havia dormido.
Virou a noite usando droga, que compra com dinheiro de programas que consegue fazer. Ela conta que o “vazio” deixado pelo crack é aterrado com cachaça. “Programa é a única coisa que sei fazer”, lamenta.
ABUSO SEXUAL NA INFÂNCIA
Na história contada por Claudineia, ela nasceu no Paraná, mas morava na Linha 64, em Rondônia, com a família. Quando tinha oito anos, começou a ser abusada sexualmente pelo pai. Com 12, decidiu fugir de casa.
“Fiquei com aquilo no psicológico, ele dizia que se eu contasse [sobre os abusos], ele mataria todos nós. Isso acontecia quando minha mãe ia trabalhar. Não conhecia a droga ainda, nem sabia o que era o mundo”.
Claudineia explica que quando fugiu de onde morava foi parar em uma casa de prostituição. Lá, ficava apenas como ajudante da cozinha. “Fiquei curiosa para saber como as outras meninas ganhavam dinheiro, também queria ganhar. Acabei ficando com uma pessoa, fiquei grávida e tive um filho quando ia fazer 13 anos”.
O bebê era um menino e nasceu em 7 de junho. De acordo com ela, a criança morreu três meses depois. Alguns dias antes da morte do filho, o pai do menino, com quem Claudineia estava morando na época, morreu em um desabamento de terra em um garimpo de Ariquemes (RO).
“Ele cavava embaixo da terra, nesse dia ele foi trabalhar e o barranco desceu em cima dele. Quando tiraram, já estava morrendo. Com meu filho entre a vida e a morte no hospital, chega a notícia de que meu marido estava morrendo”.
LEMBRANÇAS QUEIMADAS
Claudineia conta que em uma folha de papel tinha anotado algumas informações sobre ela, já que não possui mais documentos de identidade. No entanto, tudo foi queimado em uma ação da polícia, diz ela.
Para a mulher, que chora entre uma frase e outra, principalmente quando fale sobre a saudade da mãe, o sentimento é de não existir. Ela afirma que chegou a ficar nove meses sem o crack, ganhou o peso que hoje já não possui mais. No corpo, além das cicatrizes e machucados, Claudinéia traz também as marcas do frenesi causado pela droga.
O crack age no organismo de forma veloz, em poucos minutos é preciso outra dose da droga que entorpece o peso da existência embaixo do viaduto. Claudineia divide o espaço do viaduto com outras pessoas em situação de rua.
De tragada em tragada, é um pouco da consciência dela que se vai. Apesar disso, quando questionada, diz que pensa em largar a droga e pede a Deus para ter forças. Uma televisão antiga também é parte do que ela tem. No entanto, o eletrodoméstico não funciona.
Mesmo vivendo em situação de rua, ela tenta manter suas vaidades. Pede doações de esmalte e maquiagens, enquanto diz que gosta de ficar bem arrumada.
Para cozinhar, ela improvisou uma panela em um galão de plástico. No canto do barraco é onde ela toma banho com água que pede no posto de gasolina em um balde.
Claudineia afirma que é a primeira vez que conta sobre sua vida. Com os olhos marejados, ela explica que não adianta expor suas dores para os companheiros de viaduto.
“Você é uma das primeiras pessoas que estou contando minha história, não adianta eu contar para eles, basta eu falar para Deus”, finalizou.