A vila de Vilhena (sul do estado de Rondônia) ainda não tinha nascido em 1960. Além das comunidades indígenas, contava apenas um posto telegráfico, inaugurado havia quase meio século pela Comissão Rondon, perdido nos confins da Chapada dos Parecis.
Em fevereiro daquele ano, percorreu a área um homem estranho, sempre com uma escopeta pendurada ao ombro. Visitou a estação telegráfica e perambulou pela área onde, meses depois, seria aberta a rodovia BR-29 (atual 364), que liga Rio Branco (AC) a Brasília (DF).
Mas quem era aquele misterioso personagem? Trava-se de Elpídio Reali, delegado da Polícia Civil do estado de São Paulo. Por que ele estaria andando por Vilhena, fora de sua jurisdição?
Havia 15 anos que a Segunda Guerra Mundial terminara, persistia uma certa “neurose” de que nazistas e criminosos de guerra poderiam estar escondidos no Brasil; corria até a lenda de que o próprio ditador alemão Adolf Hitler teria vivido seus últimos dias, na década de 1980, em Nossa Senhora do Livramento, no interior do Mato Grosso.
Pela descrição insólita, depois de simular o próprio suicídio, Hitler fugiu para a América do Sul – a princípio, para a Argentina, depois o Brasil – e vivido como frentista de posto de gasolina, casado com uma negra e falecido aos 95 anos, sendo sepultado com o nome de Adolf Leipzig. Por mais absurda que pareça a tese, há um livro sobre o assunto: “Hitler no Brasil – Sua Vida e Sua Morte”, dissertação de mestrado em jornalismo de Simoni Renée Guerreiro Dias, publicado em 2014.
A autora recebeu muitas críticas, na época. A pesquisa não foi levada a sério por pesquisadores e historiadores. Mas, ganhou repercussão e trouxe à tona a suspeita de que muitos remanescentes do nazismo se esconderam no Brasil Central e na Amazônia, regiões pouco povoadas no pós-guerra.
VILHENA POR QUÊ?
Teorias conspiratórias trouxeram a Vilhena o “caçador de nazistas”? Na época, o todo-poderoso Sebastião Camargo, o dono da empreiteira Camargo Corrêa, iria iniciar as obras de abertura da rodovia na região. O que mudaria para sempre a cena regional, pois proporcionaria uma das maiores ondas migratórias da história do Brasil.
Sebastião, ressabiado e querendo impor-se na região dominada por conflitos e o trabalho escravo envolvendo indígenas em seringais, veio a Vilhena trazendo diretores da empresa, todos de São Paulo, e técnicos do DNER (Departamento Nacional de Estradas de Rodagem). Chegou de helicóptero, tendo a tiracolo o famoso delegado, que há anos navegava na fama de ser “caçador de nazistas”.
Elpídio Reali fazia jus à fama. Ele investigou e desbaratou em plena Guerra, em 1942, no Rio de Janeiro, uma rede de espionagem da Abwehr [serviço secreto do exército alemão]. O delegado tinha sido enviado de São Paulo para investigar atividades suspeitas de alemães infiltrados na então capital do Brasil.
Em um sobrado no distinto bairro do Leblon, zona sul do RJ, Elpídio encontrou Niels Christensen, engenheiro civil, nome atrás do qual se escondia o alemão Josef Starziczny. Ele mantinha equipamentos de criptografia para enviar informações diretamente para o almirantado alemão, em Hamburgo.
Com a prisão do espião, Reali fez com que o navio britânico Queen Mary, que partiu do Rio de Janeiro levando oito mil soldados canadenses, mudasse de rota e não fosse atacado pelos alemães. Em 1949, Elpídio Reali recebeu a Medalha de Guerra do comandante do II Exército, general Henrique Teixeira Lofft.
Quando veio a Vilhena, em 1960, o agente da polícia estava respondendo como secretário de Segurança Pública, em São Paulo. Ele foi ao Posto Telegráfico Vilhena [conhecido como “Casa de Rondon”], falou com o diretor da repartição, Marciano Zonoecê, questionou se existiam mensagens suspeitas e como era a movimentação na área. Zonoecê, indígena paresí do Mato Grosso, morava em Vilhena desde 1943, junto com sua família. O máximo que acontecia por ali eram mensagens meteorológicas e aquelas dirigidas pelos seringalistas, sem sobressaltos.
O resultado das “investigações” de Reali não é conhecido. Não há notícias de que a região, tão erma na época, tenha servido de paragem para nazistas, nem durante nem após a Guerra. O desconfiado policial demonstrou simpatia, sempre com um leve sorriso no rosto, chegou a posar para fotos na Casa de Rondon com a família dos residentes. Além dele, estavam acompanhando Sebastião Camargo outras personalidades do Judiciário de São Paulo, a exemplo de Jorge Ribeiro Leite (corregedor geral de justiça) e Luiz de Mello Kujawsky (procurador geral de justiça).
Poucos meses depois, exatamente em 4 de julho de 1960, o presidente da República Juscelino Kubistchek inaugurou a rodovia de terra, aberta em tempo recorde, que se converteu no mais importante eixo de colonização regional. JK inaugurara Brasília dois meses antes.
Quanto a Reali, ele seguiu na polícia. Depois que JK saiu do poder, muita coisa mudou no país. Em 1964, houve o golpe civil-militar e o delegado foi elevado à condição de diretor do temido DOPS (Departamento de Ordem Política e Social), órgão de repressão a comunistas e opositores do regime militar. O próprio ex-presidente Juscelino teve os direitos políticos cassados e chegou a ser preso.
Elpídio Reali foi pai do famoso jornalista Reali Júnior, falecido correspondente internacional que atuou no jornal O Estado de São Paulo e na Rádio Jovem Pam.
NAZISTAS NA AMAZÔNIA
Não foi em Rondônia. Mas poderia. Hitler tinha interesse na Amazônia. Entre 1935 e 1937, uma comitiva de quatro nazistas alemães percorreu o Rio Jari, entre o Amapá e a Guiana Francesa. “Pela primeira vez, a suástica de um avião alemão será vista sobre a foz do Amazonas”, escreveu, cheio de entusiasmo, o jornal “Westfäliche Landeszeitung”.
A missão autorizada por Adolf Hitler era pretensamente cientifica. Com a ajuda de indígenas, os homens coletaram mostras zoológicas e carregamentos de animais vivos, além de produzirem centenas de fotografias e filmagens. Os motivos reais eram validar aquela velha teoria conspiratória, muito comum de se dizerem nos bares da vida: os gringos querem tomar a Amazônia. Hitler queria mais: invadir toda a América do Sul.
“A tomada das Guianas é uma questão de primeira importância por razões político-estratégicas e coloniais”, é o que diz um relatório de 1940 preparado pelo biólogo e geógrafo Otto Schulz-Kamphenkel, da elite do Terceiro Reich.
Só para exemplificar, após a guerra, em 1945, milhares de nazistas de alto escalão fugiram para países da América do Sul. O “anjo da morte”, o sanguinário médico Josef Mengele morreu afogado em 1979, em Bertioga, litoral de São Paulo.